terça-feira, 22 de julho de 2008

A DEUSA VIDA, ou ADEUS À VIDA

O título é paradoxal, mas não é desprovido de sentido. Aliás, é o que mais tem. Pode ser lido como uma ode à existência; contudo, também lema de despedida. Pobres, desvalidos, doentes, sofridos, injustiçados, complexados, marcados, perseguidos, azarados, infelizes, neuróticos, psicóticos, drogados, bêbados, traídos, roubados, frustrados, loucos, desesperados, descrentes, desalmados, desanimados, desorientados, desamparados, tem esta preferência. Não preciso listar quem faça da vida esplendor.

Fui contratado como advogado de defesa de um desses infelizes. A infelicidade é um tapete tecido aos poucos, com muitos fios, e pedaços emendados. Quase nunca se resume num ato, ou em apenas um fato. São muitos, variados, dezenas de vetores que pouco a pouco vão delineando um quadro sombrio, triste na vida da pessoa. Dizem que dinheiro atrai dinheiro. Pois digo que a tristeza atrai ainda mais tristeza. O círculo vicioso é um parafuso descendente, um buraco-negro no qual dificilmente alguém pode escapulir com as próprias forças, ainda mais se combalidas, como sói acontecer.
Minha missão é defender a vida de um desses desgraçados. O adjetivo não é por desprezo. Deve-se à total falta de graça que ronda o infeliz. A vida dá muitas voltas, e o moribundo tonteou, cambaleou e ora se prostra à despedida. Acreditou no semelhante, e como prêmio recebeu uma saraivada de golpes. Grógui, a um passo do nocaute, vejo uma vida valorosa e rara, justamente pela pureza, e no entanto, exatamente por isso, está condenado à morte, banido do convívio social. Não tem malandragem, nem ambição. Não gosta de roubar, tampouco prejudicar. Não mente, mas também nada tem. Ao que serviria, então? Mais parece um alienígena do que humano. "Que vá duma vez", dizem os famintos, "um a menos para repartir o Universo".
Assumi sua defesa. Trabalho voluntário, movido por um misto de curiosidade, incredulidade e amor pela justiça.
Quero saber a origem de tamanha infelicidade, porque suponho que ninguém nasce com este intento. Geralmente há um momento crucial, e depois uma seqüência, de modo que antes de tudo preciso mapear as circunstâncias que o levam a querer se despedir da vida. Conheço pobres, alguns ladrões, já vi gente presa, traída, expulsa, mas querer morrer e não ter força sequer ao suicídio, isto é inédito para mim.
Vou entrevistá-lo. Tendo em vista seu miserável estado, ele não se furtará, não terá prurido em confessar seus motivos para tanta falta de motivação. Igualmente ele não terá porque recear ser exposto à opinião ou julgamento público, porque entende que nada mais tem a perder. Neste caso, digo-lhe que para quem nada mais tem a perder, só resta ganhar, ou recuperar.
Provo a certeza de meu vaticínio com minha própria presença, a seu lado. Pronto. Se nada mais tinha, agora pelo menos algo tem: um defensor desinteressado e incondicional a seu lado. E, certamente, serei apenas o primeiro, porque confio na capacidade e na solidariedade inata do ser humano, ainda mais quando não se requer nenhum dispêndio, mas apenas atenção, comiseração, piedade. Piedade talvez seja mesmo a palavra mágica que poderá reanimá-lo. Não há quem resista a uma prova de piedade, que em última análise, é decisiva prova de amor. Será o bastante, tenho certeza. Mas antes, quero que conte suas mágoas e decepções, seus desenganos, de modo que possa recolhê-los, para jogá-los no lixo. No fito da felicidade, há que se ter liberdade. Para exercê-la, quanto menor o pêso, mais fácil voar. Endereço-lhe sinceras preces. Qualquer ser merece atenção; especialmente um desprezado.

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